Ensaios de "Somente uma pequena prova de amor" - Leitura e comentários
Não é de agora que o meu modelo de discípulo - ou aluno, o que no fundo dá no mesmo - deriva diretamente das artes marciais. O discípulo deve cumprir o que o mestre diz simplesmente por confiar neste último. Já o aprendizado, sempre cumulativo, dificilmente por feeling, surge geralmente quando o discípulo está no limite último das forças. Daí minha insistência em levar o ator ao limite da exaustão da exacerbação ou - neste caso, ou seja, em "Somente uma pequena prova de amor" - na irrisão da sensibilidade. Sentir nada para sentir e provocar o sentimento de tudo.
Concebo, não como idiossincrasia, que cumprimos, todos, apenas o estágio 1 de meu processo de ensaio de peças de teatro com este perfil, ou seja, com o perfil de "Somente uma pequena prova de amor". Esse estágio 1 consiste na validação, na prática, de uma sensibilidade minimamente aproximada daquilo que busco, tanto em termos de leitura, atuação, movimentos, som e luz, assim como de coordenação com o público (no ensaio, imaginário).
O estágio 2 cumpre a efetiva anulação de toda sensibilidade na expressão do ator. Algo que o Brunno tentou, e não conseguiu - embora tenha conseguido muita coisa em relação àquilo que ele fazia no começo -, e algo em que o Rycardo, ao que parece, parece não acreditar - a expressão na inexpressividade.
O estágio 3 cumpre a coordenação do estágio 2 na anulação da expressividade da luz e do som, algo que mal pudemos experimentar, pela ausência quase absoluta de meios e de tempo. A música, por exemplo, teria de ter se dado por meio do melhor intérprete - Gidon Kremer, que não comprei. O som deveria ter sido estudado de forma a salientar os tons agudos, médios e graves da música de forma diferenciada, em tempo e cobertura no espaço do teatro. Os sons agudos devem dominar o centro do palco de uma altura determinada. Os sons médios permanecem ao fundo, dominando o palco daquela altura para baixo. Os sons graves devem percutir (sim, percutir) por debaixo do público, afetando suas entranhas, realmente. Já a luzdeve afastar-se de QUALQUER leitura pré-determinada (algo que eu, para facilitar, denomino clichê). A luz não aparece aos poucos, por exemplo. Ela simplesmente aparece. A luz não some em decrescente, por outro lado. Ela simplesmente some como um facho de luz desaparece. A luz foca, de forma avassaladora, um determinado ponto do palco - e não é trabalhada de forma a causar um efeito no público. A luz cumpre uma função com respeito ao objeto no palco, e não com respeito àquele que está assistindo o espetáculo. Pois este não é um espetáculo.
O estágio 4 cumpre trabalhar todos os aspectos acima aumentando, de forma radical, a explosão e a inexpressividade dos recursos expostos. A luz, que deve explodir em alguns momentos, deve ser realmente exagerada, de forma a incomodar o público exageradamente - provocando repulsa. A luz, que deve simplesmente pairar, em outros momentos, deve ficar no real limite da inexpressividade, causando uma insegurança tamanha ao público que ele é quase levado a sair em pânico. Não para causar medo, é claro, mas para obrigar o público a esmiuçar A PRÓPRIA sensibilidade. Daí minha insistência em falar baixo, realmente baixo - embora claro -, obrigando o público a acompanhar fielmente o que está sendo dito, a música que é trabalhada, a luz que é trabalhada com cuidado. E NUNCA surpreendendo o público como se ele estivesse numa espécie de show. A luz que explode cumpre função dramática bem específica que escapa à própria sensibilidade do ator. É claro que o estágio 4 deve trazer suprema insegurança no ator, que passa a se sentir acuado. Mas isso faz parte.
O estágio 5 é a experimentação de toda essa sensibilidade no palco, de forma a todos perceberem que fazem parte de um só organismo, que avança porque assim quer e que se deixa levar pelas condições, porque a isso é obrigado. Daí que no final TODOS SÃO UM.
Nota sobre a equipe
O Brunno superou-se bastante, mas - embora compreendendo minha insistência em todos os pontos - ainda reluta em abandonar-se completamente - e, é claro, temporariamente - às indicações de sensibilidade do diretor. Reputo que isso se deva em parte às próprias convicções - e ninguém mais aberto que ele, na equipe, ao questionamento de suas próprias convicções e sensibilidade pela confiança no que está sendo feito -, mas também à idade. Surgirá o momento em que ele perceberá que para melhor expressar aquilo que de tão sutil não consegue fazer com o tom de voz do personagem, precisará utilizar aquilo que aprende - e deveria aprender - comigo. Ir além do sujeito.
O Rafa sofreu muito com todos os desafios de ordem técnica, e dividiu-se entre o papel e suas atribuições técnicas. Ao final, tive de optar por tirar dele a fala do interlocutor do personagem do Brunno, e sua mágoa expressa, em parte, certa insistência em privilegiar o pessoal ao profissional. Mas ele acabou entendendo. No último ensaio, jogou a música alto demais, sem com isso parecer expressar nada a não ser certa rebeldia, e isso me incomoda. Pois não é necessário.Simplesmente a rebeldia não é necessária. A rebeldia cabe quando o sujeito entende que o que acontece não se diz expressivo, a ele enquanto sujeito sem gosto, sem preferências, algo que poucos conseguem realmente, pois insistem em "gosto disso, não gosto daquilo".
O Rycardo, com sua postura aquiesciente, parece não entender que, ao falar, ele tem realmente de dirigir-se numa outra direção àquela em que ele permanece. Mas ao menos fica nessa posição com certa convicção, sem errar demais. Terei de verificar se ele realmente consegue entender o que eu quero dizer quando digo que menos é mais, sempre.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário